A história dos videogames no Brasil é um universo paralelo alheio ao eixo principal EUA/Japão/Europa, uma realidade onde a Sega não só venceu a Nintendo, como continua a vender consoles mais de 20 anos após sair oficialmente do mercado de hardware, graças a uma de suas mais valiosas parceiras, a Tectoy.
Stefano Arnhold, ex-CEO e um dos primeiros empregados da Tectoy, recentemente concedeu uma entrevista contando histórias de sua passagem pela empresa, entre elas, o pouco conhecido “causo” sobre uma proposta de um portátil preto-e-branco, segundo ele, mais capaz de concorrer com o Game Boy, uma ideia rechaçada pelos japoneses.
Seria mais ou menos assim (Crédito: Theresa/Wallpaper Cave/Ronaldo Gogoni/Meio Bit)
Tectoy e Sega, uma parceria vencedora
A Tectoy (originalmente, Tec Toy) foi fundada em 1987 como uma companhia de brinquedos diferenciados; além dos games, um de seus produtos mais lembrados é o Pense Bem, a versão licenciada do Smart Start, lançado lá fora pela Vtech, uma empresa de Hong Kong.
Stefano Arnhold se uniu à companhia quase que imediatamente após sua fundação, tendo passado pela Sharp, que através da subsidiária Digimed e seu intermédio, conseguiu assegurar a distribuição no Brasil do Intellivision junto à Mattel, enquanto a Gradiente (pela Polyvox) trouxe o Atari 2600 de forma oficial ao país, após vários “atariclones” já estarem disponíveis por aqui.
O executivo conta que nessa época, a Sharp não demonstrou interesse em negociar com a Nintendo para lançar no Brasil seus portáteis Game & Watch, por considerar o mercado local “muito pequeno”, além de não estarem interessados em minigames.
Daniel Efraim Dazcal, fundador da Tectoy e da Elsys (de quem já falamos por aqui), tinha interesse inicial de concorrer com a então gigante Estrela no ramo de brinquedos, algo quase impossível; com então 55% do market share e 50 anos de experiência (ela foi fundada em 1937), ela não tinha ninguém à vista no retrovisor, e mesmo outras empresas já estabelecidas no setor, como Glasslite e Grow, não eram uma ameça; uma novata tinha chances nulas de mudar a maré.
O que Arnhold propôs, ao assumir a divisão de marketing da Tectoy, foi ignorar a Estrela e se voltar aos videogames, mas da maneira legal, assegurando um contrato de distribuição com a Sega, visto que a Nintendo na época não tinha interesse no Brasil; a Gradiente tentou, e o “não” recebido levou ao Phantom System.
Stefano Arnhold (esq.) e David Rosen (centro), co-fundador da Sega (Crédito: Stefano Arnhold/acervo pessoal)
O mais interessante é que assim como a Nintendo, a Sega originalmente não queria saber do Brasil, ainda mais a ideia de importar as peças e montar tudo na Zona Franca de Manaus, essencial para assegurar incentivos fiscais e oferecer produtos com preços competitivos. A Tectoy foi favorecida pelo interesse da Samsung em fazer o mesmo na Coreia do Sul, ao que algum interno teria sugerido aos executivos da companhia, incluindo o co-fundador David Rosen, a tentar a sorte com aquele bando de “brasileiros malucos”.
Vale lembrar que na ocasião, a Sega estava traumatizada pela experiência ruim nos Estados Unidos com a também fabricante de brinquedos Tonka, que tinha zero experiência com eletrônicos, e temia repetir a dose no Brasil; o que favoreceu a Tectoy, no entanto, foi o ambiente darwinista criado pela reserva de mercado, que forçou profissionais de eletrônica a serem criativos, e muitos dessa época tinham extenso conhecimento na área.
Embora não impressionada, a Sega apresentou à Tectoy uma proposta de “teste de águas”, iniciar a parceria lançando um produto de sua então problemática divisão de brinquedos, a pistola de laser tag (pergunte a seus pais) Zillion. De novo, os brasileiros insistiram em montar tudo aqui, e todos os esforços da então minúscula empresa foram postos em fazer o produto dar certo.
Tal abordagem arriscada envolveu negociar com a Rede Globo a inclusão do anime acessório Zillion, criado para promover a pistola no Japão, na grade de desenhos do Xou da Xuxa; como resultado, a Tectoy vendeu mais unidades no Brasil, do que a Sega e outras parceiras no resto do mundo.
No entanto, o brinquedo que a Tectoy mais vendeu no Brasil foi mesmo o Pense Bem, graças ao suporte contínuo na forma de vários fascículos com exercícios tematizados em diversas marcas, em especial as locais.
Clones, Playtronic, e o tal “Sega Game Boy”
A Tectoy lançou o Master System no Brasil em 1989, mirando nos primeiros “nintenclones” disponíveis no mercado, o Phantom System (Gradiente) e o Top Game (CCE), além dos demais que viriam depois. Ambas empresas já eram grandes players no mercado de eletrônicos, e vinham fabricando clones de sistemas desde o Atari 2600.
A Guerra nos Consoles no Brasil acabou assumindo um formato de batalha por proxies, de um lado o Master System, o Mega Drive (lançado em 1990, como uma “opção avançada” para não irritar os donos do console de 8 bits) e o Game Gear (que chegou em 1991), produtos oficiais licenciados pela Tectoy, e do outro, uma série de cópias do NES e posteriormente, importações do Super NES.
Só em 1993 a Nintendo chegou ao Brasil de forma oficial, através da joint venture Playtronic formada entre a Gradiente e a Estrela, que lançou os consoles de mesa e o Game Boy por aqui. Arnhold conta que o portátil monocromático da Big N vendia bem mais que o seu, embora o Game Gear fosse um produto excelente na sua opinião, mas era um insano devorador de pilhas, devido à tela de LCD colorida com retroiluminação.
Vale lembrar que o Game Boy vendeu mais de 100 milhões de unidades em todo o mundo, contra pouco mais de 10 milhões do Game Gear.
O Game Boy vendeu bastante no Brasil, como era de se esperar (Crédito: Reprodução/Nik/Unsplash)
Na opinião do ex-executivo da Tectoy, a única chance de concorrer em iguais termos com a Nintendo seria introduzir no mercado um portátil similar, com um display monocromático menos exigente energeticamente; a empresa conseguiu um meio de adquirir um hardware de uma empresa de Taiwan, que teria o áudio melhorado pelos técnicos locais, e uma tela fornecida pela Tiger, com a qual a empresa já tinha acordos para localização de seus minigames.
Stefano Arnhold diz que na sua cabeça, o portátil Game Boy-like capaz de rodar games da Sega seria um sucesso, mas ao apresentar a ideia aos japoneses, estes foram categóricos:
“Nós (a Sega) nunca iremos lançar um console portátil monocromático.”
É compreensível, o fato do Game Gear ser colorido era o grande diferencial frente ao concorrente (sim, eu sei que o Atari Lynx foi lançado antes, mas ele sequer alcançou 1 milhão de unidades vendidas), e a matriz sempre teve a preocupação de estar um passo adiante em desenvolvimento, o que lhe custou caro a médio prazo.
Coisa nossa
Stefano Arnhold também compartilhou histórias sobre como a Tectoy lançou games exclusivos no Brasil, desde originais reprogramados, a desenvolver títulos inteiros localmente, o que segundo o executivo, foi feito por pura necessidade: em um determinado momento, “todo o catálogo” do Master System, que foi descontinuado em 1991 no Japão e em 1992 nos EUA, já havia sido lançado no Brasil, e o público queria mais.
Uma das soluções foi aproveitar a similaridade entre o Master e o Game Gear, e converter games do portátil para o console de mesa, já a outra foi modificar sprites e traduzir textos (pausa para lembrar da excelente localização de Phantasy Star), substituindo personagens em games como os vários Wonder Boy (Monster Land, The Dragon’s Trap, e Monster World do Mega Drive), Teddy Boy, Asterix and the Secret Mission, Psycho Fox, Ghost House e outros, para transformá-los em aventuras estreladas pela Turma da Mônica, Geraldinho, os cachorros da TV Colosso, Sapo Xulé, Chapolim Colorado, etc.
Posteriormente, a Tectoy começou a produzir games do zero, como Férias Frustradas do Pica-Pau e Castelo Rá-Tim-Bum, além de versões locais únicas como Street Fighter II, Mortal Kombat 3 e Battletoads in Battlemaniacs, jogos hoje considerados raríssimos e disputados a tapa por colecionadores.
Outra pílula interessante, apesar da Sega resistir e recusar várias propostas de Arnhold ao longo dos anos, os japoneses foram muito receptivos à sugestão de um game estrelado por Ayrton Senna, ao ponto da matriz assumir o desenvolvimento interno de Ayrton Senna’s Super Monaco GP II. É importante contextualizar que no Japão, Senna era visto como um super-herói, e teve sua trajetória inclusive contada em um mangá, publicado quando ainda estava vivo.
A empreitada foi viabilizada com a ajuda do então VP da gigante, Shoichi Iramajiri, que até pouco tempo antes ocupou a mesma posição na Honda, e chefiou a divisão de corridas da montadora que forneceu o motor da lendária McLaren MP4/4 do brasileiro, com a qual ele ganhou o campeonato da Fórmula 1 em 1988.
Arnhold conta que o profissionalismo extremo do corredor deixou uma impressão forte no time de desenvolvimento, quando este reclamou de coisas comuns em games de corrida, por exemplo, passar por cima de uma zebra prejudicava a velocidade.
Senna dizia (e ele estava certo) que isso só poderia acontecer se o carro estivesse em alta velocidade, e disse que isso deveria ser corrigido; quando os devs da Sega retrucaram, dizendo que era algo “muito difícil” se ser implementado, Senna respondeu:
“Não, vocês têm que fazer isso, porque vocês querem o meu nome no game.”
No fim, foi feito como ele queria.
Ayrton Senna recebe um prêmio de Arnhold, por ser “o primeiro brasileiro imortalizado em um videogame” (Crédito: Stefano Arnhold/arquivo pessoal)
Vale muito a pena conferir a entrevista completa, onde Stefano Arnhold fala também sobre outras peculiaridades da relação entre a Sega e a Tectoy, como a revitalização do Mega Net, um serviço do Mega Drive descontinuado no Japão, que evoluiu e teve funcionalidades únicas, o relançamento do Mega Drive em 2017, a Hot Line, o serviço de dicas pelo telefone, e o Sega Club, uma newsletter mensal impressa que trazia dicas e lançamentos, um pesadelo logístico que chegou a ter mais de 230 mil assinantes.
Sem contar, claro, o fato do Master System se manter disponível, entre suas várias encarnações, por mais de 30 anos nas lojas brasileiras.
Fonte: Time Extension